Espécie segue ciclo natural, com ações de monitoramento e educação ambiental.

No coração do Vale do Guaporé, na fronteira entre Rondônia e a Bolívia, milhares de filhotes de tartaruga-da-Amazônia (Podocnemis expansa) seguem em direção às águas do rio neste mês de dezembro. A cena marca uma etapa essencial do ciclo de vida da espécie, símbolo da biodiversidade e do equilíbrio ecológico da Amazônia.
Neste ano, o período de desova começou com atraso. A mudança ocorreu por uma combinação de fatores, entre eles, as alterações climáticas. Mesmo assim, a eclosão dos ovos e o nascimento dos filhotes começaram no início deste mês.

Em Rondônia, a espécie desova em praias localizadas nos municípios de Costa Marques e São Francisco do Guaporé. A reprodução também ocorre em praias bolivianas, na margem oposta do Rio Guaporé.
A eclosão é um dos momentos mais aguardados do processo reprodutivo. Também é um dos mais vulneráveis. Ao romper a areia, os filhotes enfrentam predadores como urubus e outras aves. No rio, o risco vem de jacarés e peixes de maior porte.

Proteção
Para proteger o maior berçário de tartarugas de água doce do Brasil, e um dos maiores do mundo, a Associação Comunitária e Ecológica do Vale do Guaporé (Ecovale) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) acompanham todas as etapas do processo reprodutivo.
O monitoramento começa com a subida da fêmea à praia e a escavação do ninho. Em seguida, ocorre a postura dos ovos e o retorno da fêmea ao rio. Depois, vem a fase de eclosão e nascimento dos filhotes. O trabalho conta com o apoio de outros órgãos, instituições, empresas e voluntários.

Ao longo dos anos, essas ações integradas permitiram que milhões de filhotes alcançassem o Rio Guaporé. O resultado reforça a importância da educação ambiental, da fiscalização e da proteção contínua das praias de desova.
Nascimento
Apesar do atraso na desova, o nascimento dos filhotes ocorre dentro da normalidade. A avaliação é do ambientalista José Soares Neto, conhecido como Zeca Lula, um dos fundadores da Ecovale. Segundo ele, as chuvas começaram mais cedo neste ano, o que gerou preocupação. Havia o risco de a eclosão coincidir com a cheia do rio.
“Começou a chover em agosto e ficamos apreensivos. No ano passado, o rio encheu muito rápido e houve grandes perdas. Mas, neste ano, as chuvas se normalizaram. A natureza está seguindo seu curso”, explicou.

Após a eclosão dos ovos, os filhotes nascem, geralmente, durante à noite, e permanecem temporariamente em uma área cercada. O procedimento permite a contagem dos indivíduos e ajuda a reduzir o chamado “pitiú”, odor que atrai predadores como aves e jacarés.
De acordo com o Ibama, apenas entre os dias 11 e 15 de dezembro, foram contabilizados 60 mil filhotes. A expectativa é que o pico de eclosão ocorra nas próximas semanas. O processo deve se estender até o fim de dezembro e o início de janeiro.

Ao final do monitoramento, os dados coletados serão analisados estatisticamente. A análise permitirá uma estimativa mais precisa do número total de filhotes nascidos, considerando a extensão e a quantidade de praias monitoradas.
O biólogo Leandro de Oliveira Almeida, gerente de Desenvolvimento das Políticas Públicas em Educação Ambiental da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam), explica que o nascimento em grande número faz parte de um ciclo natural. Esse ciclo é fundamental para o equilíbrio dos ecossistemas.

Segundo Leandro, nem todos os filhotes chegam à fase adulta, o que é esperado. “Esses filhotes também servem de alimento para outros animais. Isso mantém o equilíbrio natural da vida. A presença de predadores faz parte do ciclo”, afirma.
O biólogo lembra que a espécie sofreu forte pressão de caça no passado. Na década de 1990, esteve ameaçada de extinção devido ao consumo da carne, dos ovos e da gordura. “Hoje é uma espécie protegida, mas que ainda precisa de conscientização constante”, ressalta.

Leandro também destaca o papel ecológico da tartaruga na bacia Amazônica e no Vale do Guaporé. A espécie contribui para a dispersão de sementes e para a manutenção da vegetação aquática. “Ela ajuda no controle de algas e musgos, mantendo o equilíbrio dos ambientes aquáticos”, explica.
Para o biólogo, a Amazônia e suas espécies são referência mundial. “Não é só a floresta que é exemplo para o mundo, mas também as espécies e os modelos de preservação desenvolvidos aqui”, afirma.

Mudança de comportamento
Zeca Lula destaca que a ação humana provocou mudanças no comportamento dos urubus na região do Rio Guaporé. Segundo ele, no passado, havia grande fartura de peixes. Os pescadores descartavam vísceras na praia, como barrigadas e guelras. “O urubu vinha se alimentar e acabou se acostumando a frequentar a praia”, relata.
Com a redução da quantidade de peixes ao longo dos anos, esse descarte diminuiu. “Ainda tem peixe, mas não como há 20 ou 30 anos”, afirma.

Diante da escassez, os urubus passaram a buscar novas fontes de alimento. Os filhotes de tartaruga se tornaram uma alternativa fácil. “O urubu veio atrás de comida, encontrou um petisco e acabou adotando isso como principal alimento”, lamenta.
Os ataques costumam ocorrer ainda na areia. “O urubu corre atrás do filhote, bica, machuca. A tartaruga chega ferida ao rio, com sangue”, descreve. O ferimento atrai outros predadores. “O sangue chama a piranha, que acaba completando o ataque”, conclui.

Soltura
Além das solturas diárias neste mês de dezembro, a Ecovale e o Ibama promovem, todos os anos, um dia especial de celebração e educação ambiental. Na ocasião, população e autoridades participam da liberação simbólica de parte dos filhotes.
Neste ano, a ação ocorreu no domingo (14), com a soltura de cerca de 12 mil filhotes no Rio Guaporé. Entre as autoridades presentes estavam os deputados Ismael Crispin (PP) e Luizinho Goebel (Podemos). Goebel destinou recursos, por meio de emenda parlamentar, para a Ecovale.

O deputado Ismael Crispin preside a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa. “Precisamos aliar o desenvolvimento com a preservação ambiental”, afirmou.
Educação ambiental
Ao longo do ano, Ecovale, Ibama, Sedam e parceiros realizam ações de educação ambiental na região. Zeca Lula enfatiza o trabalho desenvolvido nas escolas.
“A criança é o maior multiplicador de ideias. Ela aprende, chega em casa e convence a família. Só existe o vendedor porque existe o comprador de tartarugas. Nosso trabalho não é só salvar filhotes, mas mudar essa lógica de caça predatória por meio da educação ambiental”, concluiu.

Segundo Zeca Lula, essas iniciativas valorizam a vida e a biodiversidade amazônica. Também destaca o papel das comunidades locais e das instituições parceiras na proteção dos ciclos naturais.
A voluntária e advogada Ozana Sotelle de Souza Rozendo, de 36 anos, ressalta a importância dessas ações. “Essas atividades são importantes para a preservação do meio ambiente. As tartarugas ajudam a manter o equilíbrio dos rios amazônicos e indicam a saúde do ecossistema”, afirma.

A voluntária conheceu a Ecovale em 2021 e atua como voluntária nos períodos de desova, nascimento e soltura. Neste ano, levou um grupo de pessoas, entre crianças e adolescentes, para conhecer o trabalho desenvolvido pela Ecovale. “Eles foram às praias, ajudaram na busca por ninhos e aprenderam sobre preservação. O que fazemos hoje reflete no futuro da espécie”, destacou.

Texto: Eliete Marques I Jornalista Secom ALE/RO


